A edição de março de 2018 do boletim informativo EDUC>ação traz como tema principal os desafios e as desigualdades enfrentadas pelas mulheres no mercado de trabalho no país. Fortalecidos, ainda, por medidas como as reformas trabalhista e da previdência, com potencial ainda mais destrutivo para elas, como apontam, por exemplo, dados do próprio Ministério do Trabalho sobre a abertura e fechamento de vagas no mercado formal em 2017.
Construída ainda antes da desistência, por parte do governo Temer, de levar à votação a Reforma da Previdência, a entrevista a seguir debate os principais desafios para as mulheres nesse cenário de incertezas quanto as regras para aposentadoria, pensões e todo o sistema da chamada “seguridade social”.
Confira abaixo a entrevista com Patricia Brasil Massmann, advogada na Duailibe&Massmann Advocacia e Professora da Graduação em Direito da Faculdade Devry Metrocamp em Campinas, além de Mestre e Doutoranda em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
EDUC>ação: A proposta final do governo para a reforma da previdência, já bastante alterada desde sua primeira apresentação, apontava para idade mínima de 62 anos para as mulheres e 65 anos para os homens se aposentarem, necessitando ainda quarenta anos de contribuição para o beneficio integral. Qual o potencial que uma medida dessas teria na vida das trabalhadoras?
Patricia Brasil (PB): As alterações propostas pela PEC 287 ao atual regime previdenciário brasileiro acentuam as desigualdades entre homens e mulheres. Recente pesquisa do IBGE revela que as mulheres trabalham em média 3 horas a mais que os homens diariamente e isto se deve à dupla ou tripla jornada, isto é, à distribuição desigual das tarefas domésticas e do cuidado com os filhos. A conta mostra que as mulheres trabalham o dobro de horas no trabalho doméstico se comparadas aos homens. Esse trabalho não é remunerado, pois não é considerado produtivo. Assim, quando se aumenta a idade necessária para que a mulher possa se aposentar do trabalho produtivo, ignora-se o desgaste causado pelo trabalho doméstico, menospreza-se a sobrecarga das mulheres em toda uma vida de cuidado do lar e da família. A redução na idade para a aposentadoria da mulher funciona hoje como um instrumento compensatório.
Evidentemente que a mudança se reflete diretamente na saúde das mulheres, com adoecimento ainda maior. E, o mais óbvio, o número de mulheres que não terão direito à aposentadoria, pois, como se sabe, o mercado não abre as portas para mulheres em idade mais avançada, ao contrário, a tendência é de que não encontrem colocação, deixando de contribuir com a previdência e perdendo o direito de aposentadoria em função de não terem alcançado o tempo de contribuição necessário, mesmo que tenham a idade prevista. Temos que considerar, ainda, a mudança de regra da aposentadoria especial de professores, setor cuja ocupação é majoritariamente feminina e de baixa renda.
EDUC>ação: É fato comprovado por diversas pesquisas a diferença salarial entre homens e mulheres que ocupam os mesmos cargos. Como essa diferença pode interferir na hora da aposentadoria das mulheres?
PB: A proposta da PEC 287 tende a piorar a situação da mulher que se aposenta. Pelo regime atual, o cálculo da aposentadoria considera a média aritmética simples dos 80% maiores salários de contribuição do(a) trabalhador(a), o que para a mulher significa por si um valor menor do que o dos homens, pois, como demonstrou recente pesquisa realizada pela Catho, as mulheres ganham menos que os homens em todos os casos, considerando as mesmas funções, ou seja, o salário de contribuição para efeito de cálculo já é menor. De acordo com a PEC 287 a regra deixará de considerar os salários mais altos, a conta terá como base todos os salários recebidos, inclusive os menores, o que reduzirá, portanto, o valor da aposentadoria. No caso das mulheres, sabemos que os salários iniciais são muitíssimos reduzidos, de modo que, mesmo que no avanço da carreira se chegue a um patamar mais próximo ao salário dos homens, ela será prejudicada pelo novo cálculo por conta dos salários anteriores.
Além disso, a nova fórmula de cálculo da aposentadoria proporcional prejudicará a todos, o que se acentua diante da situação de desigualdade da mulher no mercado de trabalho.
EDUC>ação: Outro fato incontestável é a longevidade média maior das mulheres em relação aos homens. Sendo assim, sabe-se que muitas delas, ao chegarem aos anos finais de vida, dependem de pensões de esposos(as) ou filhos(as) já falecidos(as). Como a mudança que impõe um teto de dois salários mínimos para o recebimento de pensão e aposentadoria cumulativa pode afetar essa fase da vida das mulheres?
PB: Mesmo com as alterações no texto original, a PEC 287 propõe a redução dos valores da pensão por morte e de sua cumulação ao salário mínimo. Se aprovada, a emenda limitará em dois salários mínimos para quem cumular a pensão por morte com a aposentadoria. Além disso, a pensão deixará de ser integral, mesmo quando não cumulada com aposentadoria, ficando em 50% do valor do benefício do segurado falecido e mais 10% por dependente. O texto é confuso e resultará na diminuição do valor recebido. Na prática, estará se condenando a própria família e penalizando quem contribuiu a vida toda, mas morreu antes de desfrutar da aposentadoria, por exemplo. No cenário de maior longevidade para a mulher, isso significa uma redução drástica na renda familiar e necessidade de maior esforço da mulher para sustentar a família. O interessante é que essa redução passará a exigir mais do Estado, com educação, saúde e moradia, por exemplo. É uma conta cega, para não dizer estúpida, que mais uma vez prejudica a mulher e sobrecarrega o próprio Estado.
EDUC>ação: A propaganda da reforma tem apelado para slogans como o “fim dos privilégios” e para um Brasil “quebrando” sem as mudanças na previdencia. Diante de uma realidade cotidiana bem mais complexa, qual sua avaliação da utilização destes slogans?
PB: Os slogans são instrumentos fundamentais do capitalismo. Utilizados desde A Revolução Francesa como estratégia de descompressão, muitas vezes deturpam a realidade ou os múltiplos sentidos por trás das normas e políticas aplicadas, na tentativa de angariar o apoio popular, ou, pelo menos, diminuir a resistência do eleitorado. Notadamente, esses slogans encontram eco na baixa educação política da população e na construção de uma memória seletiva sobre a história do Brasil.
O que se percebe no texto da reforma é absolutamente o contrário do que prega o slogan, fosse um produto à venda, configuraria prática de propaganda enganosa contra o contribuinte e contra o interesse público. Não há qualquer dispositivo na reforma que acabe com privilégios, não há critério de proporcionalidade nas novas regras, elas são iguais para todos, inclusive para os que ganham menos, como as mulheres. Certamente, quando você tem uma regra sem proporcionalidade, ela prejudica mais quem ganha menos. Não se mexe, por exemplo, com a aposentadoria dos detentores de cargos públicos eletivos ou de confiança, não se reveem os benefícios de magistrados, que são muito superiores aos da média da grande população contribuinte. Os privilégios continuarão mantidos para quem os tem, em prejuízo de quem mais precisa de amparo. A conta é repassada para os pobres, o que revela claramente a posição ideológica do governo e de sua base de apoio.
Talvez a única medida realmente boa da PEC 287 seja a proibição da desvinculação de receitas da União na Previdência. Hoje, quando se diz que a previdência está quebrada não é por conta das aposentadorias, mas por conta do quanto se tira da previdência para financiar outras necessidades do governo, através da chamada DRU – Desvinculação de Receitas da União, que pode retirar até 30% do valor da previdência para cobrir outros gastos públicos. Se esta medida tivesse sido adotada anteriormente, e se nosso sistema não impusesse a troca de favores pela governabilidade, nem se cogitaria dizer que a previdência está quebrada. E se ela está, não é por culpa dos aposentados, nem dos contribuintes, tampouco dos demais beneficiários.
EDUC>ação: Com o aumento do tempo de contribuição e diante de um quadro que inclui a reforma trabalhista já aprovada no ano passado, como a reforma da previdência pode afetar mais especificamente a saúde das mulheres trabalhadoras?
PB: Hoje a responsabilidade financeira pelas famílias é compartilhada entre homens e mulheres. Como já expus, além de ter de trabalhar no mercado para dividir as despesas, as mulheres acumulam em dobro o cuidado do lar e da família. As mulheres se submetem a trabalhos desgastantes no mercado e assumem a integralidade do trabalho desgastante do lar. Nesse ritmo, a saúde das mulheres está cada vez mais prejudicada. Tendo de aumentar o tempo de trabalho para se aposentar, o desgaste será ainda maior e acumulado, o que se soma à precarização do atendimento de saúde na rede pública. O adoecimento biológico e psíquico será ainda mais notável nesse novo cenário de degradação das condições de trabalho provocadas pela reforma trabalhista, o que impactará em aposentadorias por invalidez ou doença incapacitante. Mais uma vez a reforma é estúpida.
EDUC>ação: Uma pesquisa do IBGE sobre o mercado de trabalho no Brasil em 2017 apontou que no último ano os empregos informais ultrapassaram os empregos formais no país. Pensando que boa parte desta mão de obra informal é composta pelas camadas mais abaixo no que se refere à renda, é possível dizer que a reforma da previdência tem potencial ainda mais devastador para as mulheres mais pobres?
PB: A reforma não é proporcional, isso por si afeta os mais pobres. Numa situação social de ampla desigualdade para as mulheres, a consequência será maior desigualdade, mais prejuízos às mulheres pobres, e ainda mais às mulheres pobres e negras em boa parte do país, pois há uma clara interseção entre gênero, classe e raça, no que tange à desigualdade. Ademais, as mulheres estão em maior número no mercado informal, isto é, poucas contribuem por muito tempo, o que as afasta do benefício considerando o aumento no tempo de contribuição que a reforma exigirá. E são essas as que mais vão necessitar da pensão do marido ou filho, quase sempre os únicos da família no mercado formal, porém essa pensão também será reduzida. Ou seja, é um efeito dominó de aumento da miséria.
São medidas que longe de resolver o problema (que poderia ser amenizado com a cobrança das entidades que devem à previdência) vão acentuar o cinturão de miséria do nosso país que caminha a passos largos de retrocesso para uma convulsão social. Medidas como essas, somadas à reforma trabalhista, ao desemprego em massa, ao corte de gastos com a educação e a saúde aumentam a insegurança (não necessariamente a criminalidade) e com isso, “autorizam” o incremento da violência do Estado contra as ameaças sociais, que obviamente, são as pessoas que foram prejudicadas por todas essas reformas – os pobres e a classe média.