Repasse de espaços físicos, gestão terceirizada e até prédios com nomes de empresas: “Future-se” escancara vontade de por fim ao modelo de educação dos IFs, referência no país.
“Se algo se parece com um pato, nada como um pato e grasna como um pato, provavelmente é um pato”. Uma antiga frase feita pode nos ajudar a entender o que signifca o programa “Future-se” apresentado pelo governo Bolsonaro em julho deste ano – se pode entregar espaços físicos a entidades privadas, se pode ser gerida por entidades privadas e se pode até receber o nome de entidades privadas provavelmente o programa é a privatização velada das institutições públicas de ensino.
Apresentado como uma grande inovação pelo ministro Abraham Weintraub (o mesmo autor de “universidades são locais de balbúrdia”), o programa Future-se vem sendo criticado por sua visão privatista e ao mesmo tempo simplória do que representam os Institutos e Universidades Federais do país.
Em resumo, o Future-se altera diversas leis para, em tese, fortalecer a “autonomia financeira das universidades e institutos federais, por meio do fomento à captação de recursos próprios e da autorização para contratualização com uma Organização Social”, segundo material divulgado pelo Ministério da Educação.
São, portanto, dois objetivos complementares: captar recursos e iniciar “parcerias” com Organizações Sociais, as OSs. Seguindo a realidade atual brasileira, a maior parte destes recursos viriam do repasse e mesmo da doação de propriedades dessas instituições para as OSs. Essas organizações, por sua vez, passariam a ter papel preponderante na gestão destas instituições e poderiam até mesmo colocar os espaços antes públicos como garantias em fundos de investimento em ações na bolsa de valores.
O programa, em boa parte genérico em seus termos, permite que as OSs assumam a tomada de decisões em diferentes níveis de gestão das instituições – incluindo a execução de seus planos de ensino, pesquisa e extensão. Além disso, incentiva a ‘competitividade’ entre departamentos na busca por recursos financeiros externos e que a pesquisa seja feita sob o critério único da lucratividade.
Para Fábio Bezerra, professor do CEFET-MG e mestre em Educação Profissional e Tecnológica, o estabelecimento de um critério mercadológico para a pesquisa e a extensão das instituições tende a colocar questões sociais, ambientais e temáticas dos Direitos Humanos que não tenham fins lucrativos em 2º ou 3º plano. Ou pior, tais pesquisas podem, a médio prazo, não existirem mais “por falta total de interesse privado em financiar tais projetos e programas”.
Bezerra critica o argumento da “autonomia financeira” utilizado pelo MEC para justificar o programa. Num momento de sucessivos cortes dos investimentos públicos, o caminho dos recursos privados tende a colocar cursos que atendam outros interesses que não do lucro em uma posição de “descarte” ou, no futuro, na posição de que só poderiam seguir existindo mediante cobrança de mensalidade. “Talvez isso não ocorra agora, mas a médio prazo essa sem sombra de dúvidas será uma das ‘saídas’ que o Governo de Plantão apresentará à comunidade acadêmica e à sociedade”, afirma.
Confira entrevista completa com Fábio Bezerra:
Para professor, Future-se é ‘passaporte para o retrocesso’
Não por acaso, a proposta já ganhou nas redes sociais o apelido de “Fature-se”, por sua imposição da busca de valores unicamente mercadológicos em espaços que deveriam servir para a expansão das múltiplas formas do saber.
Sua visão simplória do que significa a pesquisa científica também vem sendo criticada. Conforme Allan Kenji, doutorando em Educação da UFSC, afirma em entrevista ao Portal EPSJV, da Fundação Fiocruz, a submissão do ensino superior e da pesquisa aos interesses privados traz riscos à chamada “pesquisa de base”, aquela que pode não ter um retorno econômico imediato, mas representar avanços significativos no futuro. Kenji cita como exemplo a internet 5G, que significará um acréscimo de velocidade e qualidade de sinal ímpar na história das comunicações: “Para chegar à tecnologia do 5G foi necessário um conjunto de pesquisas desenvolvidas na China em áreas como transmissão de ondas e comportamento de partículas que não tinham resultado econômico imediato”, afirma.
Para ele, além de pesquisas na área de humanas e sociais, onde é mais difícil mensurar retornos econômicos, a proposta do Future-se “ameaça também o desenvolvimento científico em áreas estratégicas, como o desenvolvimento de satélites, telecomunicações, medicina, entre outras, que dependem de muita pesquisa de base”.
Quanto à autonomia universitária, o maior risco estaria que no futuro as OSs passem a controlar até mesmo a completa gestão de ensino, pesquisa e extensão das instituições. Se no momento isso não parece dado, uma das últimas mudanças de legislação propostas pelo Future-se apresenta uma pista do que o programa prega como ‘o futuro’.
Depois de assumir a gestão de boa parte dos Hospitais Universitários sob a promessa de manter sua estrutura vinculada exclusivamente ao SUS, a EBSERH, Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, teria sua lei alterada pelo Future-se em dois parágrafos: no primeiro deles suprime-se a exclusividade do atendimento via SUS. No segundo, afirma categoricamente que “os hospitais universitários poderão aceitar convênios de planos privados de assistência à saúde”.
Para quem duvida do que a entrada das OSs possa significar, Weintraub, o ministro por trás do plano, deixa tudo mais claro em entrevista ao Portal UOL em julho deste ano. Perguntado se o programa poderia permitir a contratação de pessoal via CLT a partir da vinculação com as Organizações Sociais, o ministro afirma: “[Se eu] Quero contratar uma pessoa via CLT. A OS permite fazer isso, como o modelo da Ebserh permite fazer isso”.
Reportagem publicada originalmente na edição impressa 08 do boletim EDUC>ação (agosto/setembro 2019).
Leia mais desta edição:
Para professor, Future-se é ‘passaporte para o retrocesso’
Sem verba, Campus São Chico corta subsídio para almoço de estudantes