Especialista na área da educação, Fábio Bezerra aponta para o desmonte que se deseja promover pelo Future-se, programa apresentado em julho de 2019 pelo Ministério da Educação. Para ele, o programa representa inversão de valores da ciência no país
Fábio Bezerra, docente a 21 anos na Rede Pública, é professor de Filosofia no CEFET-MG, Mestre em Educação Profissional e Tecnológica e membro da Rede Tecnológica de Extensão Popular- RETEP. Especialista na área da educação, conversou com o EDUC>ação por e-mail para reportagem sobre o programa Future-se. Confira abaixo a íntegra da entrevista.
SINASEFE Litoral: Na sua opinião quais seriam as principais consequências para o desenvolvimento da pesquisa e da extensão no Brasil com o ‘Future-se’?
Fábio Bezerra: A médio prazo, o sentido dos projetos e programas de pesquisa e extensão estariam praticamente vinculados a propósitos mercadológicos em sua totalidade. Ou seja, os critérios que são valorizados pelo mercado: lucratividade, desempenho concorrencial, eficácia comercial, entre outros, serão os critérios que balizarão a finalidade dos projetos de pesquisa ou programas de extensão.
Por sua vez, as questões sociais, ambientais, sanitárias, questões relevantes que tangem os Direitos Humanos, o acesso a tecnologias sociais ou mesmo a potencialidade dos recursos da ciência para o desenvolvimento de medidas que atendam necessidades humanas, sem fins lucrativos, ficarão relegadas a segundo, terceiro planos, ou mesmo não existirão mais por falta total de interesse privado em financiar tais projetos e programas.
Dessa forma teremos uma IFE [Instituição Federal de Ensino] voltada exclusivamente aos interesses privados do mercado, acentuando mais ainda a desigualdade gritante em nossa sociedade, restringindo e instrumentalizando todo o potencial que a Ciência e a Tecnologia podem oferecer à população mais pobre aos interesses de grandes empresas e até mesmo de fundos de investidores. Uma total inversão de valores e sentido da Ciência e Tecnologia enquanto Política Pública.
Considerando que atualmente as IFE respondem por quase a totalidade da pesquisa desenvolvida no país, como você caracterizaria o argumento do governo de que o programa incentivaria a iniciativa privada a investir em pesquisas das universidades?
De fato poderá haver um aumento de investimentos da iniciativa privada nas IFEs, mas naquilo que gerará lucratividade imediata ao produto e/ou ao procedimento desenvolvido, que poderão ser apropriados pela empresa com patente exclusiva.
Mas em um cenário de poucos anos, o que veremos é a redução de pesquisas e projetos de extensão em muitas unidades de ensino e departamentos, pois algumas áreas não serão atrativas ao investimento privado, tendendo a curto ou médio prazo a reduzirem sua produção por falta de investimentos ou mesmo a encerrar as atividades acadêmicas nesse campo.
Hoje, a maioria das pesquisas e projetos de extensão tem sido custeadas com recursos provenientes de fundos públicos (estaduais ou federais) como acontece com a CAPES, por exemplo, e é graças a esses Fundos Públicos que pesquisas e programas necessários e urgentes ao povo brasileiro e que muitas vezes não possuem fins lucrativos imediatos são financiados, atingindo resultados importantes para o bem-estar da população.
Após a celebração do acordo da instituição de ensino com o “Future-se”, a tendência a curto ou médio prazo é essa instituição se tornar um centro de excelência em alguma área específica que atenda aos interesses exclusivos dos setores produtivos locais.
O discurso do governo toca muito na questão da “autonomia financeira” das instituições. Você imagina que esse argumento possa ser utilizado para em breve passar a cobrança nas instituições públicas a partir dessa mesma lógica? Como combatê-la?
Muitas vezes a “autonomia financeira” tem sido representada pelos neoliberais como “autonomia administrativa” e uma coisa não tem nada a ver com a outra! Alegando a constitucionalidade da Autonomia Universitária, os neoliberais defendem que as IFE devem então se autofinanciar e exercer essa “autonomia” administrativa para suprimir “livremente” seu custeio e demais despesas.
O que isso representa, além da falácia retórica desse discurso liberal é a tentativa de sedimentar argumentos que possam convencer a opinião pública dos reais motivos que levam a privatização das IFE nesse contexto de desmonte do patrimônio público.
Nesse momento, seria insano por parte do Governo, ainda mais após as gigantescas manifestações de 15 e 30 de Maio contra os cortes que o MEC impôs a Educação, sugerir a cobrança de mensalidades, mas perceba que o “Future-se” regulamenta o funcionamento de um Fundo Privado que deverá ser administrado por uma Organização Social (OS) e que esse fundo poderá arcar com valores pagos à prestação de serviços de servidores vinculados aos projetos financiados por empresas privadas, transformando os Departamentos em verdadeiras start-ups, e poderá inclusive financiar bolsas de pesquisas e de extensão aos estudantes vinculados a esses projetos.
Essa veiculação acadêmica acabará dando condições de continuidade não apenas ao sucesso do projeto, mas também a continuidade de muitos estudantes neste ou naquele curso de graduação. Ora, vejamos, aqueles cursos que não conseguirem ser suficientemente atrativos ao mercado investidor, terão dificuldades em manter projetos de pesquisas e programas de extensão e consecutivamente não terão recursos para bolsistas.
Sabemos que a evasão universitária acontece por diversos fatores e entre estudantes mais carentes essa evasão é mais perceptível. Ao se vincular ao “Future-se” a Faculdade deverá se enquadrar em um conjunto de metas, entre elas um percentual mínimo de estudantes matriculados ao final do curso, o que deverá ser atingido com maior facilidade nos cursos e Departamentos que estiverem recebendo recursos provenientes desse Fundo Privado de Investimentos administrado pela OS.
Dessa forma ou os cursos que não se autofinanciarem pela prestação de serviços privados a OS fecham as portas, ou acabarão encontrando justificativas “naturais” para a cobrança de mensalidades. Percebam que esse mecanismo é meticulosamente pensado para dar condições àqueles Departamentos que não se enquadrarem fecharem as portas ou cobrarem mensalidades. Talvez isso não ocorra agora, mas a médio prazo essa sem sombra de dúvidas será uma das “saídas” que o Governo de Plantão apresentará à comunidade acadêmica e à sociedade.
O pior de tudo é que nessa armadilha, há um componente moral maniqueísta em sua forma e perverso em seu juízo de valor: se o curso acadêmico e o departamento em questão não conseguem parceiros interessados em investir é porque ou são muito incompetentes ou são desnecessários. E ambas as coisas, no verbete do moralismo neoliberal, são representados à opinião pública como ineficácia e desperdício com o dinheiro público.
O governo diz que a adesão ao programa é voluntária, mas diante dos cortes de verba do mesmo ministério, sua imposição pode se dar de maneira semelhante ao que ocorreu com a EBSERH e os Hospitais Universitários? Você vê a possibilidade de resistências locais ao projeto?
O Governo já está criando condições de pressão e criará outras condições para pressionar as IFEs a aderirem ao “Future-se”. E não faltará, infelizmente, muitos que, sedentos por celebrar contratos rentáveis com empresas privadas, irão fazer lobby dentro e fora das IFEs para aderirem ao Programa de Privatização que o “Future-se” representa.
Por isso é importante acompanharmos não apenas os passos do MEC e de seus asseclas no Congresso, mas também dos oportunistas e lacaios de plantão que se espreitam pelos corredores dos Conselhos Universitários e Assembleias de Departamento cheios de “boas intenções”! Sobre as imposições possíveis o exemplo da EBSERH, ainda nos Governos Petistas é um exemplo possível.
Acredito na força da mobilização através do mais amplo e crítico debate de ideias, o que representa contextualizar todo esse cenário com o projeto em curso a nível nacional e, porquê não dizer, a nível internacional, que entre outras coisas, procura desenvolver no Brasil um modelo de Estado Mínimo associado a redução de espaços democráticos, desmonte de Políticas Públicas e apropriação do patrimônio público pelo mercado.
A priori a proposta do “Future-se” se ancora na necessidade das IFEs se modernizarem e cumprirem seu papel com o desenvolvimento de soluções que gerem emprego e combatam a crise. Mas quando apresenta as condições e os custos dessa modernização, logo se percebe que o “Future-se” é o passaporte para o retrocesso.
Esse debate não deve se pautar apenas na evidência da crise econômica e os impactos nas finanças públicas. Até porque se fôssemos por esse caminho inevitavelmente teríamos que questionar os mais de 43% do PIB destinados ao mercado financeiro para o custeio de uma Dívida Pública que nunca foi auditada!
Mas quando digo que não deve se pautar apenas nesse campo, falo isso porque a sociedade brasileira, e em especial o conjunto da classe trabalhadora, deve refletir qual o sentido social e porque não dizer ético que as IFEs ainda possuem?
Essas instituições hoje possuem em sua maioria filhos e filhas de trabalhadores(as), que tem a oportunidade de estudar em instituições de qualidade, mesmo depois de tantos e tantos ataques; de estarem em uma instituição pública responsável por diversos projetos de Pesquisa e Desenvolvimento que tem garantido resoluções a problemas endêmicos nessa desgraçada saga de desigualdade, miséria e subordinação que marcam a História de nossa sociedade, sobretudo à população mais pobre.
E os avanços ocorridos com a democratização ao acesso à educação no Brasil fizeram diferenças significativas nesses últimos anos. Sem dúvida as gigantescas manifestações ocorridas em mais de 200 cidades brasileiras em 15 e 30 de Maio demonstraram a disposição de luta em defender esse Patrimônio que os Institutos Federais e as Universidades Federais representam.
Sim, é possível e necessário resistir! Mas agora estamos diante de um dos maiores – se não o maior- ataques que as IFEs já enfrentaram. E as sutilezas dessa armadilha batizada de “Future-se”, associada com as falácias da imprensa, pseudo-especialistas “chapa branca” e lobistas dentro e fora das IFEs, exigirá de todos e todas que possuem um compromisso com a educação pública em toda a sua dimensão muito mais do que força para denunciar mais um atentado contra a educação. Exigirá de nós uma ampla unidade, estratégia para a contraofensiva e sobretudo muita firmeza em nossos princípios e convicções.
Trechos desta entrevista foram utilizados em reportagem publicada originalmente na edição impressa 08 do boletim EDUC>ação (agosto/setembro 2019).
Confira os textos da edição:
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