Massacre na educação [PdB]

“Não questiono o inalienável direito de defender a própria vida ou a de outrem, mas não deixa de impressionar a disseminada fantasia segundo a qual a popularização do porte de armas de fogo levaria – ao contrário do que afirmam os especialistas no assunto – a que tivéssemos mais segurança. E o que dizer de professores armados na escola, um lugar de frequente violência, inclusive contra eles? Suponha-se que fossem treinados para manusear revólveres e pistolas e, num momento de tensão, ao presenciar alunos se ameaçando, gritos, insultos, resolvessem sacar suas armas. Haveria, depois do devido curso de “capacitação”, a distribuição de uma cartilha com o devido protocolo de ação assinado pelo Ministro de Estado da Educação?”

por Alexandre Fernandez Vaz¹

Gregory Reeves é o personagem central de um dos romances de Isabel Allende, El plan infinito, de 1991. Inspirado nas narrações memorialísticas de seu marido, a autora traça um interessante panorama da vida da segunda metade do século passado nos Estados Unidos da América.

Os anos 1960, como não poderia deixar de ser, emergem com força e, em seu interior, a Guerra do Vietnã. O protagonista vai aos confins do inferno existencial no sudeste asiático, vida regada a droga, medo, paranoia, sofrimento, loucura. Em meio a isso, sua segunda missão, depois de recolher-se por algum tempo após um surto emocional, não será no front, ao menos não no sentido tradicional do termo.

Ele é escalado para lecionar inglês em uma pequena escola do interior, em área dominada pelos estadunidenses e pelo governo de Saigon, mas sob forte ameaça vietcongue. A posição de professor, embora exercida, é apenas uma fachada, o que fica claro no primeiro dia de aula, quando ao entrar em sala, o mestre deixa o fuzil-metralhadora ao alcance das mãos. Havia uma guerra em curso.

Antes de ontem [13 de março] soubemos de um espetáculo retratado por outro espetáculo, ambos em suas piores versões, o primeiro de sangue, o segundo midiático. Dez pessoas morreram, outras ficaram feridas, depois que dois jovens invadiram uma escola e distribuíram balas, setas e machadadas como se jogassem milho a pombos. Não há por que (e nem como) descrever a cena. Ela é só horror.

Eis que no mesmo dia, um Senador da República vem a público afirmar que melhor seria que os professores estivessem armados (como Gregory Reeves, do romance de Allende?), de forma a evitar tais situações. Manifestou-se em consonância à campanha e a uma afirmação do Presidente da mesma República, que, em mais uma de suas constrangedoras confidências pessoais, disse dormir com uma arma próxima de si.

Não questiono o inalienável direito de defender a própria vida ou a de outrem, mas não deixa de impressionar a disseminada fantasia segundo a qual a popularização do porte de armas de fogo levaria – ao contrário do que afirmam os especialistas no assunto – a que tivéssemos mais segurança.

E o que dizer de professores armados na escola, um lugar de frequente violência, inclusive contra eles? Suponha-se que fossem treinados para manusear revólveres e pistolas e, num momento de tensão, ao presenciar alunos se ameaçando, gritos, insultos, resolvessem sacar suas armas. Haveria, depois do devido curso de “capacitação”, a distribuição de uma cartilha com o devido protocolo de ação assinado pelo Ministro de Estado da Educação?

Os dois rapazes que mataram jovens e adultos a esmo também foram vítimas, de si mesmos, completando a barbárie com o provável assassinato cometido por um deles que, por sua vez, logo se suicidaria. Leio na imprensa que frequentavam o que se chama de internet profunda, catacumbas virtuais em que misoginia, racismo, homofobia, pedofilia, entre outros impulsos mortíferos, não apenas encontram espaço de convivência, mas se articulam em associações e mútuos incentivos.

PERSPECTIVA DE BASE:
Seção do site dá espaço às opiniões dos filiados ao Sindicato

Não conheço tal dimensão da virtualidade, com fóruns de ameaças e ações criminosas, mas, ao que parece, está ao alcance de qualquer menino ou menina que tenha um celular e seja um pouco versado nas redes. Não resta outra para a Educação a não ser enfrentar, com força, a questão da realidade virtual, seja porque há gozo mortífero nas aprovações e reprovações, na procura por seguidores, na leitura de comentários e na expectativa do que alguém saberá por alguém sobre algo que diz respeito a outra pessoa, seja porque há muito do modus operandi do virtual que migra para a realidade de carne e osso, de cheiros e gostos*.

Que os jogos de imagem que nos capturam por sua velocidade e nos prendem pelos movimentos inebriantes e pelas demandas que nos colocam, se confundam com a realidade vivida, embaralhando os sentidos, é um movimento que há tempos vem ganhando força destrutiva.

O ponto extremo de um processo diz muito sobre seu desenvolvimento, de forma que não é o caso de vermos os episódios de Suzano como uma exceção. Por triste que seja reconhece-lo, a violência é regra e está nas raízes da formação da nação, e não é com mais dela que entrará em declínio.

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Há sessenta anos Theodor W. Adorno publicava um de seus mais importantes ensaios sobre educação, Teoria da semiformação (Theorie der Halbbildung). Em uma nota de rodapé ele diz de uma das promessas não cumpridas que a sociedade liberal fizera, a constituição de subjetividades autônomas. Para tal, haveria que se ter a capacidade de operar com conceitos e de realizar experiências. Naqueles tempos de pós-guerra, isso estava suspenso, hoje está morto. A adição virtual não parece contribuir muito para que a autonomia reviva, não fosse, ao menos, como utopia.

E por falar em massacre na educação, sugiro ao Ministro da pasta que se ponha a serviço do combate à barbárie, essa que não está somente nos tiros que matam, mas também no culto ao obscurantismo, tão em voga no atual governo.

* Uma boa síntese sobre o tema pode ser encontrada do texto Parabéns a você, êi, nesta data…, êi, de Marcelo Coelho, publicado na Folha de São Paulo, ironicamente, no mesmo dia da tragédia.

1 – Alexandre é Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutor em Ciências Humanas e Sociais pela Leibniz Universität Hannover, Alemanha. É professor permanente dos programas de Pós-graduação em Educação (mestrado e doutorado) e Interdisciplinar em Ciências Humanas (Doutorado), e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea da UFSC.

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