Magda Furtado*
A Medida Provisória 746, de 23/09/2016, representa um ataque gravíssimo do Governo Temer à educação brasileira, não só pelo autoritário método de se pretender reformar a educação por medida provisória, sem debate prévio com a sociedade, como também por retirar do estudante da escola pública a possibilidade de ter uma formação básica ampla, que lhe forneça instrumentos críticos de leitura do mundo, restando-lhe um ensino técnico aligeirado como opção para entrar no mercado de trabalho. É fato que o ensino médio atual tem problemas, mas é evidente também que os combalidos sistemas estaduais, que concentram 85% das matrículas nesse nível, não têm recursos para oferecer uma variedade de opções, em cinco áreas, com disponibilidade de professores sem garantia de ter turmas completas. A modalidade mais barata, com possibilidade de parcerias com o sistema privado, são os cursos técnicos de dois anos, garantindo apenas as duas únicas disciplinas obrigatórias em todas as séries, Matemática e Português, já que a Base Nacional Comum Curricular pode ocupar apenas 1200 horas de um total de 4200 horas em tempo integral (artigo 36, § 6º). Infelizmente a divisão da educação em ensino propedêutico, para assegurar a hegemonia burguesa, e ensino técnico para funções subalternas, destinado à classe trabalhadora, tem efeitos bem conhecidos na sociedade brasileira: o aprofundamento da desigualdade social.
Com a aplicação dessa medida provisória, que desfigura a atual LDB e apresenta lacunas convenientes para que o sistema privado possa montar seu “cardápio” no interesse da clientela, a educação capaz de preparar o aluno para a continuidade de seus estudos provavelmente será privilégio daqueles que puderem pagar, já que cabe às redes de ensino a escolha das modalidades a serem ofertadas – e não ao aluno, como vem sendo alardeado (artigo 36, § 1º) – sem obrigação formal de que o sistema disponibilize mais de uma opção. Ao jovem do ensino público certamente estará assegurada apenas a modalidade mais barata aos cofres estaduais, pressionados pela PLC 54 (anteriormente, PLP 257, que congela por 20 anos os gastos públicos dos estados que renegociarem suas dívidas e já está no Senado), que é a formação técnica e profissional, com a possibilidade de ser realizada em parcerias público-privadas, com profissionais precarizados, admitidos sem concurso e formação adequada, o chamado “notório saber” que a MP permite exclusivamente para o ensino técnico (artigo 61, inciso IV). O estabelecimento desses cursos técnicos aligeirados na rede estadual de Ensino Médio atingirá duramente os Institutos Federais, com cursos de longa duração e profissionais capacitados, que logo serão vistos como caros demais. Não está nada disfarçado o evidente caminho da privatização do ensino técnico e tecnológico e mesmo de toda a educação pública, para fazer frente à “religião do Estado Mínimo”, da qual os atuais mandatários do MEC são devotos, como já demonstraram em sua atuação no governo de FHC.
Ao estabelecer meta de tempo integral para o ensino básico, aumentando progressivamente de 800 para 1400 horas anuais, 7h diárias, a permanência na escola, à primeira vista a autoritária Medida Provisória 746 parece entrar em choque com o congelamento dos gastos sociais do governo federal por 20 anos previsto na PEC 241, em tramitação no congresso, bem como com o PLC 54, que leva ao mesmo congelamento no âmbito dos estados e municípios que renegociarem dívida com o governo. O regime de tempo integral necessitaria de ampliação radical de verbas para que esteja no horizonte do possível a duplicação de prédios e profissionais da educação nas escolas, que trabalham atualmente com dois e até três turnos. A MP não estabelece fontes de financiamento e só garante as transferências do FUNDEB nos parcos limites estabelecidos pela execução do orçamento federal, cuja previsão para 2017 é bem inferior às transferências de 2016. Caso seja aprovada a PEC 241, o governo federal não terá condições sequer de cumprir as modestas metas do Plano Nacional de Educação em vigor.
Porém, uma análise mais acurada do texto da MP permite concluir que foram deixadas brechas que podem levar até a uma economia de recursos, bem no espírito dos cortes de verbas na educação, já que a parte diversificada do novo currículo, dividido em áreas a partir do segundo ano, pode ser toda realizada, na modalidade V – ensino técnico e profissional –, em parceria público-privadas, na forma de ensino a distância, em cursos feitos em outras instituições ou mesmo no reconhecimento de saberes e competências do aluno que já trabalha (eis aqui a RSC para os estudantes, como uma maçã envenenada que lhe rouba horas de estudo) – artigo 36, § 11 e 17. A única parte a ser cumprida necessariamente na escola, após as 1200 horas máximas da Base Nacional Comum Curricular – que pode ser concentrada toda no primeiro ano, implantado o turno integral de 1400h que a MP preconiza – , serão as disciplinas Matemática e Português, que devem estar presentes no currículo de todas as cinco áreas a serem ofertadas a critério dos sistemas de ensino, nos três anos do ensino médio. Inglês passa a ser a língua estrangeira obrigatória, mas pode estar apenas em uma das três séries, e o Espanhol é apenas recomendado como opcional.
Diferente da versão prévia distribuída aos jornalistas, e que é a base das primeiras e apressadas análises da MP, segundo a qual apenas Filosofia, Sociologia, Artes e Educação Física teriam deixado de ser obrigatórias, na versão da MP publicada em edição extra do Diário Oficial na sexta-feira, dia 23/09, todas as demais disciplinas dependem de sua inserção na BNCC, em debate há mais de um ano. Cumpridas as 1200 horas destinadas à BNCC, que podem estar concentradas no primeiro ano, nos dois anos seguintes todas as disciplinas passam a ser opcionais, em uma especialização forçada e precoce, com a escolha limitada muitas vezes pelo restrito universo cultural do estudante em algumas áreas do país – isso onde ele terá possibilidade de escolha, já que o sistema não está obrigado a oferecer mais de uma opção. Além do baixo custo da opção pelo curso técnico, as outras modalidades (Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas) carecem de professores em diversos estados da Federação, dados os baixos salários, que serão ainda mais aviltados diante do dispositivo do “notório saber” para se contratar profissionais sem formação específica para o ensino técnico. Sendo a profissão de professor regulamentada, não importando em qual nível de ensino, cabe contestação jurídica dessa medida, que aprofunda a precarização do ensino – essa deve ser uma tarefa urgente dos sindicatos dos profissionais da educação.
A Medida Provisória apresenta diversos outros aspectos gravíssimos, como o foco na preparação para exames nacionais para avaliações Meritocráticas, como o SAEB, que normalmente incluem apenas Português e Matemática, e avaliações para o vestibular, para as quais serão cobrados conhecimentos da Base Nacional Comum Curricular, disponível para os alunos em apenas 1200 horas da meta de 4200. Em pronunciamentos emanados do MEC sobre o ENEM , percebe-se que haverá uma prova mais conteudista e também dividida em áreas, aprofundando a desigualdade para quem não seguiu uma das modalidades propedêuticas, mas sim o curso técnico, o que pode ser confirmado no artigo que fala de “processos seletivos” para o ensino superior – artigo 44, §3.
Porém, o desvelamento da intenção de aligeirar o ensino e apressar a entrada no mercado de trabalho dos filhos da classe trabalhadora se mostra com toda a clareza no parágrafo 15 do artigo 36, no qual se faculta a organização do Ensino Médio em módulos, no sistema de créditos com “terminalidade específica”, podendo o aluno abandonar o sistema para trabalhar antes da conclusão de todos os módulos – o que será possível no limitado ensino técnico possibilitado pela MP. Enquanto isso, nas escolas com condição de contratar professores para cursos aprofundados de determinadas áreas, acena-se com “aproveitamento de créditos no ensino superior” (artigo 36, §16), o que permite vislumbrar aprofundamento desnecessário de disciplinas de determinada área em detrimento de conhecimentos interditados de outra. A quem interessaria formar engenheiros que não conhecem a História (vista apenas no primeiro ano do ensino médio)? A quem interessaria formar médicos que não estudaram Geografia Humana? Linguistas sem Filosofia? A divisão em áreas estanques de conhecimento remonta à reforma do Ensino de Gustavo Capanema, na década de 30 do século XX: uma concepção de educação completamente superada pela interdisciplinaridade preconizada pela contemporaneidade, que mostra-se refratária a visões compartimentadas do conhecimento em vertiginoso movimento. Ela retira dos estudantes um direito fundamental aos conhecimentos gerais Não resta dúvida de que o atual Ensino Médio tem problemas e deficiências que geram evasão e baixo rendimento, mas não será com política autoritária de terra arrasada que vamos resolver os problemas.
Uma medida provisória tem efeito imediato e deve ser votada em 120 dias. Não há qualquer razão para que sejam impostas mudanças dessa monta na educação por meio de medida provisória. Inclusive não é eficaz, já que a Base Nacional Comum Curricular, preparada pelo Ministério da Educação no governo Dilma a partir de previsão no Plano Nacional da Educação, em vigor desde 26 de junho de 2014, tem previsão de estar pronta apenas em meados de 2017, de acordo com cronograma estabelecido para debate nos estados. A BNCC, que estava sendo preparada para ser implantada nos três anos de ensino médio, agora tem limite de apenas 1200 horas, sendo o tempo restante previsto (3000h) ocupado pela parte diversificada. Portanto, ela necessitará ser refeita para se adaptar a essa Medida Provisória, com a qual se apresenta inconciliável na maioria dos pontos. Por mais críticas que tenhamos à intervenção representada pela BNCC nos sistemas de ensino, ela vai completar um ano de debates e acolheu diversas alterações, que mantiveram uma série de graves problemas nas disciplinas, tendo sanado outros. Não é comparável ao autoritarismo dessa medida provisória, que está sendo imposta sem mínimo debate prévio e com efeitos imediatos. Uma política educacional com erro de método (não se faz educação com imposição) e a desatualização expressa no conteúdo, que pode ser aproximada à reforma implantada no Estado Novo, mas também ao método da Ditadura Militar (a nada saudosa lei 5692/71) que impôs aos filhos da classe trabalhadora uma profissionalização aligeirada e fajuta, que lhes restringia direito ao ensino de formação geral.
Com o aprofundamento das diferenças e o estabelecimento de um fosso ainda maior na desigualdade da educação brasileira, podemos cogitar em como ficarão as cotas sociais e étnico-raciais para ingresso no ensino superior público. Até agora as diferenças de notas de ingresso eram pequenas e devidamente superadas em desempenho ao longo do curso. Mas agora, com a provável ampliação da desigualdade de oportunidades entre o ensino público e o particular no Ensino Médio, é provável que essa diferença de notas se amplie e, com isso, provoque a volta do discurso conservador que ressalta o desnível de entrada como razão para que as cotas sejam suprimidas. O cenário está armado para isso; o discurso autoritário que engendrou essa Medida Provisória é o mesmo dos que já se opuseram publicamente ao sistema de cotas.
Diante da gravidade do ataque contido nessa Medida Provisória, resta enfrentarmos esse golpe com luta unificada antes que a MP vire lei (prazo de 120 dias para ser votada), principalmente para defender um dos poucos avanços na educação até então, que é o Sistema Federal de Ensino, em especial os Institutos Federais de Educação, que oferecem cursos técnicos e tecnológicos completos e integrados à formação geral, e a educação básica de reconhecida qualidade do Colégio Pedro II. Trata-se, em um plano mais amplo, de defender nossa juventude de uma formação aligeirada e que não a prepara para enfrentar nem o mercado de trabalho, nem a continuidade dos estudos. Vai ter luta!
Rio de Janeiro, 26/09/ 2016.
*Magda Medeiros Furtado é professora Colégio Pedro II, doutora em Ciência da Literatura pela UFRJ, Coordenadora Geral do SINDSCOPE e membro da Coordenação Nacional da APS/PSOL.