Em entrevista, professor Nelson Garcia Santos aborda temas da revolução cubana e do ciclo de debates sobre o tema que está ocorrendo em Blumenau
A última assembleia do SINASEFE Litoral recebeu o Professor da FURB e doutorando em Políticas Públicas Nelson Garcia Santos para um debate temático sobre o processo revolucionário cubano que completou, em 2019, 60 anos.
O professor vem organizando um ciclo de debates sobre o tema, com apoio do SINASEFE Litoral. Na assembleia do sindicato ele inicialmente conduziu uma breve introdução ao tema, transcrita abaixo, e na sequência respondeu algumas questões sobre Cuba, seu objeto de estudo no doutorado, o socialismo naquele país e sobre as atividades do ciclo. Confira!
Abertura do debate
Depois que retorna do México após ser exilado por ter coordenado o Movimento Revolucionário 26 de Julho, que tentou sem sucesso tomar dois quartéis do exército cubano, Fidel Castro coordena o processo revolucionário na ilha em 1959.
Esse processo pode ser dividido em períodos. O primeiro período é o da revolução democrático-burguesa, aonde se tentava implantar aquilo que a CEPAL, Comissão de Estudos para America Latina, propunha: a industrialização, a substituição das importações, desenvolvimento das tecnologias.
A revolução vai nesse sentido, de colocar em prática o que a CEPAL determinava, que era o que aglutinava a esquerda na época: proporcionar o desenvolvimento via industrialização em separado das grandes potências imperialistas.
Vinte meses depois do início dessa revolução é que ela se torna socialista devido às pressões que os Estados Unidos exercem em Cuba. Uma das principais delas quando a CIA consegue organizar um grupo que invade Cuba através da Nicarágua e coloca uma bomba em um aeroporto cubano. Mais de 50 pessoas ficam feridas e sete morrem. No enterro delas, Fidel afirma então que a revolução a partir dali é socialista. A partir daí, vinte meses depois de 1º de janeiro de 1959, se assume a revolução socialista.
Os Estados Unidos intensificam então o bloqueio ao país e esse então é o segundo momento, da revolução socialista, que se desenvolve com o apoio da União Soviética. A partir de tecnologia, maquinário, com Cuba também aumentando os investimentos em industrialização e importação de tecnologia russa. Ou seja, o imperialismo soviético aterriza em Cuba de uma forma bastante interessante.
Isso segue até 1987, 1988, quando o socialismo soviético entra em crise, cai o Muro de Berlim e Cuba fica desamparada e passa a viver dois bloqueios: o bloqueio estadunidense e o bloqueio da União Soviética. A ilha fica numa situação bastante precária e esse período, a partir de 1987 até 2000, fica rotulado como “período especial em tempos de paz”, um período muito pesado. As pessoas não conseguiam passar a noite dentro de casa, porque não tinham energia elétrica, não tinha ventilador, dormiam do lado de fora para pegar uma brisa da rua. Havia problemas de abastecimento alimentar. Aliás, Cuba nunca resolveu o seu problema de dependência alimentar externa.
Esse “período especial” foi bastante cruel, o que exigiu do governo revolucionário algumas ações que se voltaram para a iniciativa capitalista, como a adoção do trabalho privado, do trabalho individual e o incentivo a algumas cooperativas urbanas. O governo vai desenvolvendo o que, segundo as pessoas que entrevistei lá [quando Santos esteve em Cuba, em 2017], é uma releitura da estrategia do capitalismo ocidental.
A partir de 1994 o país passa a adotar os princípios da “agenda 21” , do desenvolvimento sustentável [resultado da ECO 92, ou Rio 92, documento que estabelece parâmetros para o desenvolvimento sustentável em escala local, nacional e global]. Cuba vai aplicar todas as estratégias em voga no modo de produção capitalista. Sem, entretanto, deixar de manter na mão do Estado os principais meios de produção.
Então o Estado cubano cria diversas alternativas para se manter como principal organizador dos meios de produção. Ele continua sendo, de alguma forma, socialista, mas vai abrindo para o capital externo. Abre primeiro a possibilidade de capital misto, entre o Estado e o capital da Espanha, na área do turismo. E isso vai se intensificando até 1998, quando se permite 100% de capital externo em Cuba.
Então o modelo vai se abrindo e quando chega no ano de 2000, na virada do século, Cuba está começando a crescer. Tem desemprego praticamente zero, a economia voltando a crescer e tal. E aí vai se implantar uma nova estratégia do modo de produção capitalista que é o tal do desenvolvimento local.
Esse desenvolvimento local surge na Europa entre 1975 e 1980 para dar maior competitividade às cidades europeias diante do fenômeno da globalização. Quando chega na América Latina, nos anos 80, a proposta de desenvolvimento local vai no sentido de tentar amenizar a miséria, o desemprego, e Cuba abraça essa ideia do desenvolvimento local e passa a instituí-lo.
Aí entram alguns setores que são bastante importantes para fazer valer o desenvolvimento local de lá. Que é a Universidade, produzindo uma Ciência, uma Tecnologia e uma Inovação que não é feita nos parâmetros da tecnologia capitalista. E aí entra a aproximação com a minha tese [de doutorado], porque daí a gente fala aqui [no Brasil] em tecnologia convencional capitalista. No final dos anos 90, surge no Brasil a proposta da tecnologia social com Renato Dagnino, Rafael Dias, Henrique Novaes, etc. O que a gente pode dizer que tem em Cuba? Será que a gente pode dizer que o que existe em Cuba é uma “tecnologia socialista”? Não, porque eles partem da ideia de que a tecnologia é neutra, e que pode ser usada para o capitalismo ou para o socialismo.
As estrategias de gerência aplicadas no capitalismo também podem ser aplicadas no socialismo e aí o que a gente tem em Cuba é uma readequação da tecnologia capitalista à proposta socialista. Esse desenvolvimento sustentável vai produzir, através da Universidade, uma tecnologia que se volta para os interesses da população, uma ciência voltada para lá e uma inovação voltada para os interesses das localidades. E aí se desenvolve em Cuba o desenvolvimento local sustentável cubano. Aí está o grande lance: ao mesmo tempo Cuba passa a ter uma característica de ser socialista, porque mantém os meios de produção sob propriedade estatal, com algumas práticas capitalistas, como a proposta do desenvolvimento local sustentável, que vem com toda a bagagem capitalista.
Nessa reconfiguração a gente vai perceber uma Cuba que se reinventa, que se redescobre, através da ressignificação daquilo que o capitalismo coloca. A gente identifica lá a economia solidária, que é também um viés da produção capitalista, a gente vê a tecnologia social e isso tudo brotando em prol do desenvolvimento local sustentável cubano. Então ela dá esse salto, no sentido de possibilitar que as comunidades tenham maior autonomia.
O que é um avanço em relação a tudo aquilo que o Partido Comunista colocou desde 1975, quando se coloca o Estado como principal agente do desenvolvimento, que tudo dali em diante passaria pelo Estado, inclusive as organizações sindicais, as associações, as cooperativas, tudo abaixo do partido. Quando chega 2011 em diante o que o partido faz? Ele agiliza ou incentiva a formação do desenvolvimento local, que possibilita uma maior autogestão daquela comunidade.
Aí vem um novo avanço, uma nova perspectiva, que está em conflito hoje em dia, né?, porque tem os mais conservadores, que querem manter sob o Estado todo o desenvolvimento da comunidade e tem aqueles que dizem que não, quanto mais autogestão tiver melhor será para o próprio socialismo. Então Cuba está numa situação em que se reivindica, por parte da população, mais autogestão, mais democracia, mais autonomia, enquanto há setores dizendo “Não, o Estado tem que controlar tudo”.
A gente está nessa situação de ‘para onde vai o socialismo cubano?’. Nesse momento o que a gente pode dizer? Só o futuro vai dizer, a história vai dizer para onde vai o socialismo cubano, porque ele está numa linha muito tênue, na medida em que ele se utiliza de estratégias capitalistas: ou ele consegue sobreviver e fazer dessas propostas que vem do capitalismo um viés para o socialismo ou ele cai nas garras do capitalismo e finda o socialismo. Então é esse momento, mais ou menos, que está aí. Em rápidas palavras, para gente começar a conversa, seria esse o quadro.
SINASEFE Litoral (SL): O Sr. passou um mês lá pesquisando, pode falar para gente um pouco mais dessa experiência? Em quais cidades esteve, o que é possível falar estando lá presencialmente, o quê te surpreendeu ou o que confirmou o que o Sr. já pensava…
Nelson Garcia Santos (NGS): A primeira vez que eu estive em Cuba foi em 1995, naquele “período especial em tempo de paz”, em que havia muita fome, em que havia problemas sérios. Quando eu fui em 2017 eu encontrei uma outra realidade. Uma situação em que não existe mais o período especial, em que você consegue alugar um apartamento, ter outros vínculos que não aquele de turista.
Você consegue penetrar mais junto à população que está ali no dia a dia. Então eu conheci os mercados onde as pessoas compram seus hortifrutigranjeiros, a gente consegue ter acesso a restaurantes que não apenas para o setor de turismo. Então agora em 2017 foi uma realidade muito mais próxima da população do que em 1995, quando eu estava mais no âmbito do turismo, até porque não se tinha acesso à população de uma forma geral.
Quando eu cheguei lá eu tive oportunidade de conhecer uma dentista, que foi a pessoa que me possibilitou alugar um apartamento, conheci a mãe dela que era uma trabalhadora na época da revolução socialista, trabalhou numa fábrica apropriada pela Revolução Cubana e era engenheira química, numa fábrica que produzia pneus. Então o apartamento dela tinha sido dado pelo Che Guevara em homenagem a ela em função dela ter se disposto à trabalhar como trabalhadora voluntária, uma categoria que surgiu após a revolução, do trabalhador voluntário, aquele que trabalha além das horas necessárias. Uma forma que dentro do socialismo aparece como uma dedicação diferente do trabalhador. Então ela estava lá no seu apartamento, dado pelo Che Guevara, que foi Ministro da Indústria.
Tive a oportunidade de entrevistar várias pessoas, professores importantes do setor universitário, como o Jorge Nuñez, um expert na questão da tecnologia, Manoel Limonta, que fundou, junto com Fidel Castro, o centro de estudos em biotecnologia. Tive a oportunidade de entrevistar um jornalista maravilhoso chamado Pedro Martinez, vice-diretor da Rádio de Havana, que me indicou várias pessoas para conversar em Havana. Enfim, foi um contato maravilhoso e com muitas entrevistas, com muitas idas à Universidade, com a possibilidade de ter ido a Pinar del Río, uma cidade que fica 150 km ao sul de Havana, para conhecer uma experiência de turismo auto-sustentável.
Então há uma preocupação bastante grande com a questão ambiental e foram as duas cidades que eu estive, Havana e Pinar del Río, entrevistando gente da Universidade, gente do jornalismo, gente vinculada à tecnologia.
Aí a gente pode conhecer algumas estratégias da Universidade voltadas não para uma tecnologia ‘high tech’, uma tecnologia de ponta, mas uma tecnologia que se volta para os interesses e à solução de problemas de comunidades, de pessoas. Problema de água, problema de alimentação. Conhecemos algumas experiências na área da Agricultura, do enriquecimento de sementes, que não trabalha com transgênico, mas em uma perspectiva ambientalmente correta.
Entretanto, Havana, com o desenvolvimento turístico dos últimos tempos, tem tido também um impacto ambiental, principalmente no que diz respeito à falta de estrutura na coleta de lixo. Então a gente vê muitos problemas, como na Avenida Malecon, a principal de Havana, de frente para o oceano, em que as pessoas vão ao final da tarde e jogam ali mesmo na orla a sua latinha de refrigerante ou de cerveja, o seu plástico. Há um problema de recolhimento, de tratamento de lixo, bastante forte, uma situação bastante precária.
Um problema de poluição atmosférica por conta dos carros e dos ônibus antigos, à diesel ou com a gasolina que vem da Venezuela, que não é uma gasolina boa, é uma gasolina que polui muito. Então você tem aqueles carros velhos, aqueles ônibus velhos, com muita fumaça, muita poluição, que causa um efeito.
Se hoje a ilha está conseguindo resolver o problema da soberania alimentar, se está conseguindo resolver o problema de emprego, os problemas no âmbito mais econômico, a questão ambiental ainda é um problema que precisa de soluções rápidas. Mas isso está muito concentrado em Havana, nas outras regiões não há esse impacto ambiental tão forte.
SL: Nelson, você falou desse processo que está acontecendo, de disputa em torno de uma centralização maior ou uma descentralização, de uma autonomia maior. E você falou que não dá para saber para onde Cuba vai, né? Essa questão da autogestão, como ela casa com a mudança na própria relação com os meios de produção. Ela pode ser bonita, mas como ela caminha para uma relação dentro das bases do socialismo?
NGS: Bom, eu vou voltar um pouquinho para falar um pouco de uma característica muito particular de Cuba, na produção da solução dos seus problemas. Algo que foi instituído principalmente a partir dos anos 80, o Fórum de Ciência e Técnica.
Então as escolas, os hospitais, as indústrias, o setor de serviços, tem esse Fórum. Que começa no município, no bairro, na sua organização de base dentro de uma empresa, de um hospital, dentro de alguma instituição, em que se detecta um problema que tem que ser resolvido por eles.
Então eles tem ali, já no seu dia a dia, que solucionar os problemas locais. Devido às crises dos bloqueios tanto estadunidense como da União Soviética, eles tiveram que arranjar soluções para os seus problemas, isso dá uma característica de autogestão para solucionar os problemas bastante grande, porque eles têm que dar conta.
Assim, “nós temos aqui um problema, não há reposição de peças, não temos como trazer a peça de fora, não temos como comprar maquinário novo e nós temos de solucionar esse problema. O que nós vamos fazer? Vamos achar a solução”. Às vezes aquela solução dada numa escola, em um hospital, em uma empresa, de uma determinada localidade pode chegar a ser implantada em âmbito nacional.
Então você tem essa prática, pelo Fórum de Ciência e Técnica, de uma experiência autogestionária na solução dos problemas. Isso é característico da organização dos trabalhadores, que tem que dar conta da solução dos problemas.
Simultaneamente a isso, conjuntamente a isso, há uma intervenção muito forte do Partido e do Estado, que enquanto o trabalhador está dando conta de resolver os seus problemas quem está decidindo política e economicamente as coisas é o Estado, através do Partido. Quando a gente fala que há possibilidade de construir uma perspectiva mais autogestionária é no âmbito do local, é a proposta que traz o desenvolvimento local, que se apoia na economia solidária e na tecnologia social.
Em que a população, os trabalhadores, tem que ter essa capacidade de decidir sobre os seus rumos. Não a partir de uma perspectiva de fora, mas a partir de uma perspectiva local. E o Estado contribui para isso na medida que é uma política de Estado a implantação do desenvolvimento local, ele está fazendo com que em todas as localidades, que aquelas pessoas envolvidas em determinadas situações deem conta de resolver o seu problema. Aquela municipalidade tem que ser sustentável, o Estado está desenvolvendo essa política que, de alguma forma, pode cambiar para um avanço bastante forte de uma organização solidária e cooperativa socialista.
Entretanto, Cuba não está isolada do mundo. Ela vive um bloqueio estadunidense, vive a pressão do Donald Trump, a pressão do governo brasileiro, ela está muito isolada. Então a proposta existente de desenvolvimento local por meio da economia solidária e da tecnologia social, de dar condições para que ela se torne autossustentável pode esbarrar nas forças que vem de fora.
Se o Estado não tiver força para barrar a pressão que vem de fora todo o avanço que está vindo da Comunidade pode ser minado. Se o Estado tiver força para resistir a essa pressão e, nos âmbitos das suas comunidades mais agrícolas, até nas comunidades mais rurais, conseguir implantar o desenvolvimento local e a autonomia a gente pode ter o desenvolvimento de um socialismo sobre nova feição, que não aquele socialismo soviético liderado por um partido, mas em que as pessoas de base consigam fazer suas organizações, suas cooperativas, suas formas de autogestão, separada de uma ameaça capitalista.
Mas é o que eu digo, isso só o tempo dirá. Se o povo cubano vai conseguir vencer as pressões externas, principalmente de bloqueio estadunidense, ou se ele vai se entregar a essas pressões. Então eu acho que é um momento de uma encruzilhada bastante forte em que a gente não sabe dizer ainda o que está por vir.
SL: O Sr. poderia falar um pouco mais de uma dessas cooperativas, como é a organização, qual a caracterização de uma dessas cooperativas em Cuba?
NGS: Eu reforço o convite para o dia 6, quando a Joana [Salém Vasconcelos] que é uma expert na questão das cooperativas, principalmente as cooperativas agrícolas. Nessa viagem à Cuba eu conheci duas experiências de cooperativas urbanas, que ficam em Havana. A cooperativa de confecções ‘Model’, que faz camisa, avental, uniforme para os trabalhadores.
Ela é de quarenta mulheres e decorre de uma situação em que a fábrica era estatal e o Estado disse que iria fechar a fábrica. Aí as trabalhadoras dizem ‘não, deixa que a gente banca isso aqui’. Então são as cooperativas não de ocupação de fábrica, como acontece aqui, mas de estatais falidas. Os trabalhadores assumem, não precisam participar de edital, nada, eles vão lá, dizem que querem tentar e o Estado dá um aval, injeta algum dinheiro e os trabalhadores tentam recuperar aquela fábrica.
Essa confecção existe desde 2013 e está se dando super bem. É a principal fabricante das camisas características de Cuba, as guayaberas, que é a principal produção dessa cooperativa, além de fazer diversos tipos de uniformes. São quarenta mulheres e alguns homens divididos entre as costureiras que só fazem a guayabera, uma mão de obra especializada, e que vai descendo em níveis internos A, B, C e D, sendo que a D seria que faz de tudo um pouco menos a guayabera. Todos participam da divisão do dinheiro, sendo que tem quem recebe mais e quem recebe menos. Por exemplo, as costureiras da Classe A recebem mais porque tem mais demanda e fazem um tipo de trabalho específico. Mas tudo de acordo com a produção, não há um patrão.
Uma parte vai para investir na própria cooperativa, uma parte fica guardado para o final do ano, que conta décimo terceiro e também a festa cultural de fim de ano, uma parte para contribuir com o desenvolvimento local e o restante do dinheiro então é dividido entre os trabalhadores.
Eu conheci também uma cooperativa de um restaurante e doceria. Essa já uma cooperativa diferente, que surge a partir de um edital do governo. O governo diz “no prédio tal será aberto edital para constituição de uma cooperativa, apresentem suas propostas”. Então quatro sócios, cinco sócios, dez sócios montam uma proposta, um projeto de atuação. E, nesse caso, o vencedor foi um grupo de quatro pessoas que criaram essa cooperativa, conseguiram através do banco estatal cubano financiamento necessário para investir na cooperativa e a partir daí eles começam a aglutinar pessoas para trabalhar juntos.
Em 2017 a cooperativa tinha 230 sócios. O que eles fazem? Eles vão lá e dizem “eu quero me associar à cooperativa, eu gosto de trabalhar como garçom, ou como copeira, chapeiro, etc.” Aí, dentro dessa função a pessoa passa três meses trabalhando até poder se associar. Trabalhou aquele tempo vira sócio. Todas as decisões são tomadas coletivamente, em assembleia uma vez por mês. E aí então eles são responsáveis pela compra da matéria-prima, pela transformação, eles determinam o horário de trabalho.
Nessa cooperativa, que é fundamentalmente para o turismo, eles trabalham 12 horas e descansam 36. Aí eles vão ter, dentro desses duzentos e tantos sócios, uma escala de trabalho. Todos recebem de acordo com a sua função, quem é da cozinha vai ganhar um X, quem é garçom vai ganhar outro e por aí vai.
Mas eu acho que no dia 6 a Joana Salém Vasconcelos vai falar muito mais dos outros tipos de cooperativas. Na minha tese eu trato das cooperativas agrícolas, desde a sua formação, nós temos lá três ou quatro tipos de cooperativas que se constituíram ao longo da história cubana.
Mas a principal, assim, que não é uma cooperativa, mas que aglutina as cooperativas agrícolas é a Associação Nacional dos Pequenos Agricultores, a ANAP. Que vem, desde os anos 60, fazendo um papel muito importante na organização e formação dos agricultores e que a partir de 1997 começa a implantar na região agrícola os princípios da agroecologia. Então também tem toda uma história bastante bonita do pessoal da ANAP, que vale a pena conhecer.
SL: O Sr. poderia também falar um pouco mais sobre o ciclo de debates. De onde surgiu a ideia, como que se chegou nesses convidados e nesses temas?
NGS: Então esse ano se completam os sessenta anos da Revolução Cubana, que ocorreu em 1º de janeiro de 1959, quando o Fulgencio Batista foge e o governo revolucionário entra. Então nós estamos comemorando nesse ano de 2019 os 60 anos da revolução. O semestre foi andando e eu percebi que ninguém estava fazendo nada, não tava botando na roda essa discussão. Foi onde eu comecei a estabelecer alguns contatos, com o Instituto de Estudos Latino-americanos, o IELA, da UFSC. Daí então, em conversa com o professor Waldir Rampinelli ele achou interessante, se prontificou a vir. Conheci, através das leituras feitas e de pesquisa bibliográfica para tese os trabalhos realizados pela Joana Vasconcelos e aí então mantive contato com ela, que também achou interessante a ideia da celebração desses sessenta anos. Na FURB nós temos um professor cubano, que é o Adolfo Lamar, e quando eu procurei ele para vir falar ele indicou outras pessoas, entre eles o Edwin Pitre, que é quem vai falar no dia 7 de julho sobre a música afro-cubana no processo de construção da identidade revolucionária. Então foi assim, foi uma coisa que estava latente e que coube a mim foi tomar a iniciativa, conversar com algumas pessoas e ‘deu liga’ para construir essa comemoração, ou, ao menos, a lembrança dos 60 anos da Revolução Cubana, que é o único país socialista da América Latina.
Eu acho que nós temos o que aprender com eles, eles têm o que aprender com a gente. E a gente tem que estar nessa troca. Aí o evento saiu nessa perspectiva, contactando pessoas que gostam de tratar sobre Cuba, que tem uma perspectiva de horizonte de superar a perspectiva capitalista. E aí veio o Waldir Rampinelli, que é historiador e trouxe uma noção histórica interessantíssima. O Professor Ivo Theis, que também desenvolve estudos sobre América Latina aqui [na FURB, em Blumenau] e tem um bom conhecimento sobre Cuba. A Joana, que estuda as cooperativas, e, enfim, a música afro-cubana, para gente terminar com música. O último encontro vai ser uma sexta-feira e vamos terminar com música cubana. O Edwin é músico, vai trazer instrumentos e tal e a gente vai ter essa experiência.
Mas dos eventos que eu organizei foi dos mais fáceis de construir, porque estava aí latente mas que não tinha quem disponibilizasse algumas horas para se dedicar. Eu agradeço aqui ao Sindicato, que foi importantíssimo nisso. O Núcleo de Pesquisa em Desenvolvimento Regional, que é coordenado pelo professor Ivo, e o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Economia Solidária e Trabalho, do professor Valmor Schiochet, que também ajudou nesse processo de vinda das pessoas para cá [Blumenau].
Então no dia 6 de junho tem o penúltimo encontro, sobre a questão das cooperativas, e no dia 7 de julho sobre música afro-cubana na construção da identidade socialista.
SL: Para finalizar eu queria ir nessa linha da construção da identidade. Nos processos revolucionários que ocorreram há mais tempo, como em Cuba, ou para dar outro exemplo, na China, existe um processo de gerações já imersas numa sociedade socialista. Como é que se pode caracterizar essa questão da identidade, existem valores diferentes entre as pessoas por uma sociedade caminhar para o socialismo? Quer dizer, a ideia da construção “do homem e da mulher socialista” passa por ter mais solidariedade, empatia… isso é palpável, é visível em Cuba, ou é uma utopia?
NGS: Eu vou resgatar aqui a fala do professor Waldir Rampinelli, do nosso primeiro encontro, em que ele diz que não se pode pensar a Revolução Cubana a curto prazo. Ela é um processo. O socialismo não está implantado ainda em Cuba, está num processo de transição do capitalismo e de construção do socialismo. Por isso que a gente não sabe o que está por vir, porque o socialismo não está implantado. Se o capitalismo vingar em Cuba não é porque acabou o socialismo, mas porque o processo de transição não culminou no socialismo.
Então a gente tem que pensar o processo a longo prazo, e, como disse o professor Rampinelli: a Revolução Cubana não começou em 1959. Ela começa com José Martí, em 1892, quando ele começa a implantar um processo revolucionário de libertação da Espanha. Nesse processo, Então vem os Estados Unidos, vence a guerra, derrota a Espanha e faz de Cuba uma nova colônia estadunidense.
Nesse processo de colônia estadunidense lá em 1901 se criou a sua primeira constituição, quando os Estados Unidos exigiram que tivesse uma Emenda, chamada Emenda Platt, que permitia aos Estados Unidos invadir em qualquer momento militarmente a ilha quando ele achasse necessário. Em 1934 o povo cubano consegue tirar essa Emenda da Constituição, então isso tudo já foi resistência. Depois, em 1959, o povo cubano vai para a luta contra Fulgencio Batista, a revolução foi altamente legitimada pela população. Então você tem na história de Cuba uma identidade popular de construção da luta anti-imperialista, que busca a desvinculação com o colonialismo espanhol. Isso é parte da identidade do povo cubano, a sua soberania.
Quando o governo revolucionário é implantado o povo apoia esse governo, participa junto. Na medida em que o governo coloca como uma de suas primeiras ações a reforma agrária, a distribuição de terra para quem nela trabalha, o fim do ensino pago e o direito à educação, saúde para todos, etc.
Quer dizer, hoje um cubano não imagina, por mais que ele possa ser anticastrista, anti Fidel Castro ou Raul Castro, por mais que ele possa dizer que o que eles vivem não é um socialismo, mas eles entendem assim “pensar em nós sem educação e sem saúde, aí não!”. Isso é característico, então há uma identidade construída no processo revolucionário que faz com que eles tenham objetivos comuns de nação. Com educação para todos, saúde para todos, com moradia, com as necessidades básicas custeadas pelo Estado. Essa identidade, e me parece que o Edwin vai mostrar muito bem esse lado, passa também pela perspectiva da música. Que é uma música que vem de uma africaneidade, que vai constituir um tipo de integração cujo ritmo contribui para isso.
Eu passei um mês lá em Cuba e as músicas que eu escuto são cubanas! Não precisa ter uma interferência cultural de um outro país. Embora tenha lá de Miami mais de 100 rádios com as antenas voltadas para Havana, você vê a população nos bares, na rua, tocando e escutando músicas cubanas. Então você tem essa paixão que facilita com que as relações sociais e as relações de solidariedade, de cooperativismo, sejam mais visíveis.
Eu passei um mês lá, todo dia na rua, seja durante o dia ou a noite, passeando, indo buscar entrevistas, e você não vê ninguém sendo atacado, não vê gente pedindo esmola, não ouve tiro nem vê alguém correndo porque foi ameaçado de roubo… É uma outra realidade, que faz com que as cooperações circulem mais livremente entre as pessoas.
Essa identidade vem das cooperativas, que foram criadas logo depois da revolução, das cooperativas agrícolas, dos processos de reforma agrária, do período especial em tempo de paz, que fez com que muitas pessoas sofressem e nesse sofrimento recebessem muitas ajudas. Tudo isso constitui um povo que se mantém unido em prol de uma organização social, que não é voltada para o lucro, que não é voltada para o enriquecimento individual, para essa perspectiva mais nossa, individualista do capitalismo.
Claro que existe também o individualista, aquele que quer enriquecer mais do que o outro. Existe, é uma ilha mas não é isolada. Tem relação com o restante do mundo.
Na ilha também se quer uma internet melhor, se quer ter melhores condições de vida, tudo isso está presente lá. Mas, o princípio daquilo que foi a revolução, que vem de José Martí, que vem depois com Fidel, que vem construindo o socialismo, prepara as pessoas para uma solidariedade e uma perspectiva de cooperação bem maior do que a nossa. Então eu acho que a gente tem que aprender com eles como se dá essa relação de cooperativismo e de solidariedade que aqui a gente tem muito pouco.